quinta-feira, 4 de julho de 2019

Sombra

A primeira vez que pus meus pés neste mundo, pouco aqui existia. Eu podia sentir todas as vibrações, a luz contra meus olhos, o calor queimando em minha pele, barulhos abafados perfurando meus ouvidos, e o conforto da solidão me abraçando. Andava por aqui e ali descobrindo minhas cores, minhas formas, minha voz, e todos os meus sentimentos. Eu era uma e inteira, tão completa que até transbordei em gotas. Gotas essas que se uniram em um lindo riacho que se colocou a me seguir.  

Mas conforme caminhava, e me descobria, o riacho inundava junto comigo. O peso dificultava meu andar, prendia minhas pernas. Cansada de lutar contra correnteza, deixei que minhas águas me arrastassem para onde elas queriam me levar. Eu flutuei e perdi meus sentidos, me permiti descansar, afinal, minha voz rouca de tanto cantar precisava se recuperar, meus pés cansados mereciam após tantos séculos andarilhando, meu corpo já não aguentava após uma vida de desventuras.   

Dormi por mil anos e acordei na nascente do meu riacho. Olhei em volta e vi lindas florestas, com árvores tão altas que mal podia enxergar as copas delas, tudo graças a fertilidade trazida pela água. Cachoeiras, mares e oceanos, tudo nasceu da minha complexa existência. Por um breve momento me deliciei com o vislumbre vaidoso de meu mundo, mas então um sentimento de impotência tomou-me por inteira ao perceber que nada daquilo realmente me pertencia, como nada mais me seguia ou precisava de mim para viver. E pela primeira vez, sentia-me vazia. 

Decidi então tomar o caminho oposto da nascente, precisava encontrar um motivo, alguma coisa para que eu pudesse me preencher novamente. Foi quando olhei para trás e vi nascer de meu calcanhar uma mancha sem voz, sem forma e sem cor.  

A sombra. 

A princípio a sombra era tímida, aparecia apenas quando o sol vinha me iluminar. Banhava-me com toda sua proteção, enchia meu coração de curiosidade, e minha cabeça de perguntas. Eu não compreendia sua essência, seu propósito e suas vontades. Ela me seguia independente dos meus erros; se eu caia, ela caia, se eu parava, ela esperava. Seu silêncio me enlouquecia, e a solidão não me era tão confortável como antes. 

E em seu emaranhado de falta de sentimentos, entreguei-me completamente a ela. E eu que era uma só, inteira e completa... Tornei-me duas pela metade. As estações mudaram, no inverno os dias eram mais curtos, no verão as noites eram mais quentes, porém nós sempre estávamos lá acompanhando o ritmo do meu caminhar, do pulsar do meu sangue. Com ela, eu não podia ir à lugar algum, mas sem ela, eu não conseguiria voltar tampouco. 

As minhas pernas não aguentavam mais o peso do mundo, minha cabeça implodia com os resquícios da consciência que restara, meu corpo enraizava-se contra minha vontade. Minha alma foi deixada ao relento, porém a sombra persistiu brigando com a luz do luar, para me proteger.  

Eu acordei após mil anos, restaurada de tantos danos. Desta vez, estava decidida a tomar meu caminho pelos meus próprios pés. Eu não precisaria de algo, ou de alguém, para me completar, ou me preencher. Mas ao primeiro passo pude sentir que a forma me seguia.  

Cai no chão em prantos, sem saber como faria para desgrudar minha imagem da tão dependente sombra. Implorei para que me deixasse, mas muda como era, ela não podia me responder.  

Dei então minha vozpara que ela pudesse me dizer como poderíamos nos separar. Toda eloquente, a sombra enfim me disse: “Dê-me seus pés para que eu possa andar para longe, e então você finalmente se verá livre de mim.”.  

Desesperada pela liberdade, cerrei meus pés fora, e a entreguei de bom grado. A sombra imparcial, vestiu-os e levantou-se com toda magnitude. Eu fiquei encantada ao ver tal forma edificada pela primeira vez.  

A sombra tornou-se novamente para mim dizendo: “Eu a protegi por mil anos, e a protegeria por mais mil. Sei que queres ser livre, e eu não quero vê-la sofrer por mais um segundo. Dê-me toda a dor que sente, deixe-me carrega-la por você.” 

Ao vê-la tão grande e tão cuidadosa, minhas mãos por si só foram até meu peito e quebraram as costelas que protegiam meu coração. Eu o arranquei de uma só vez e o entreguei à sombra, grata pela sua proteção. 

A sombra então deu as costas para mim e tomou seu caminho, deixando-me estirada no chão. Sem voz, sem formato e sem cor. A terra que uma vez eu pisei acolheu-me novamente, fez de mim aquilo de que uma vez tentei fugir.  

Tornei-me uma sombra de mim mesma. 

Hoje vocês têm medo de mim, pisam em mim, se escondem de mim, se protegem em mim. E eu continuo a vos seguir, eu não posso evitar, porque apesar ter-lhes dado minha voz, meus pés, e meu coração, eu sou vocês vocês sou eu.  

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Saída, parte II

 esse texto é de certa forma continuação do texto Saída, mas não apenas uma continuação, mas sim uma explicação ou até mesmo, um nada. A não leitura do primeiro não interferirá no segundo, mas sim complementará o primeiro novamente.




 "Por favor... Por favor..." Ele sussurrava na esperança de que alguém o ouvisse, sombras vermelhas se misturavam com o roxo costumeiro. Assim já se fazia um mês no inferno.
  Ora seus olhos se perdiam no rosto calmo da mulher deitada a sua frente, ora simplesmente encarava o nada e então voltava a chorar e implorar. Como se aquilo fosse realmente a salvar. Não, não ia. Mas seu sentimento de culpa talvez fosse ainda maior que a dor de agora. Saber que poderia ter feito algo e não fez... Mas como... Se talvez não houvesse nada que ele realmente pudesse fazer.
  Se pudesse pelo menos... Seus olhos se fecharam por alguns segundos e os flashes voltaram a percorrer.
  Sem perceber estava de volta ao seu lugar favorito.

  O lugar deveria ter cheiro de rosas, doce e chamativo. Mas poderia fingir que o cheiro de material de limpeza não existisse. Assim passou a respirar pela boca.
  Ele sorriu ao ver aqueles escuros olhos, abertos e saudáveis, o encarando, ele não pode evitar encarar de volta, e sorrir ainda mais quando desistia de tentar entende-lo.
  Então ela sorriu, e aquilo fora o suficiente, o lugar encheu de luz e ele caiu ao chão chorando e praguejando a si mesmo. Não facilitava as coisas, de certo modo, talvez não queria facilitar. Ele teria de sofrer com ela. Esse era o preço a pagar.
  "EU COMETI O ERRO, POR QUE ELA? POR QUE?" Ele esbravejava e gritava aos céus. Só então abriu seus olhos e notou o chão branco e o cheiro de desinfetante enchendo seus sentidos. Continuava no hospital.
  Estava caído de joelhos e suas lágrimas cansadas insistiam. 
  Ele se deixou jogado no chão e seus olhos tornaram a fechar.

  Estavam dessa vez na praia. As ondas batiam nas pedras e ela vestia uma túnica branca, seu sorriso assustadoramente vivo. Sua pele não era aquele pálido doentio e seus cabelos negros viajam com o vento. Ela não parecia estar com frio, apesar dos respingos d'água e o vento forte. Mas isso não o impediu de aproximar e abraçá-la. Mas assim que o fez, seu corpo se dissolveu em poeira e ela estava agora lá embaixo, nas pedras brincando com a água que batia em seus pés, mas ela continuava firme. Ele fez intenção de se aproximar mas isso apenas a fez sorrir e virar as costas. Ela pulou dentro da água deixando as ondas levarem contra as pedras. O sangue se misturou com o extenso verde-azul do mar, mas seu sorriso continuava lá, lhe chamando. O rosto do homem perdeu a cor e ele recobrou a consciência.
  Em dois movimentos, de deitado no chão do quarto a cama dela, ele a abraçou, ignorando todos os tubos e maquinas em volta. Ele encostou o ouvido em seu coração e lá estava ele, batendo calmamente. Ele podia sentir as veias em todo seu corpo sendo alimentadas de sangue, mas ela ainda estava imóvel. Ele subiu o rosto e sua respiração lenta e calma bateu  na sua bochecha fazendo todos os pelos de seu corpo arrepiarem. Uma lágrima caiu no rosto da menina e ele logo a enxugou, não queria ter essa visão dela. Não agora. 
  Entre um desvaneio e outro, daquela mesma noite, ele sussurrou em seu ouvido "Por favor... Continue respirando...". Talvez ela o ouvisse e acordasse sentindo o desespero em sua voz. Mas ela nem ao menos se mexeu.

  Os dias se passavam e o homem morria um pouco a cada dia no leito de morte de sua mulher. Notícias boas surgiram no quarto ao lado... Um menino de onze anos que sofrera um acidente de carro acordou de seu coma. Em desespero, ele pensou até em perguntar ao menino se havia algo enquanto dormiam. Mas logo percebeu a loucura lhe atingindo e ele tornou a se sentar em sua poltrona olhando para o rosto pálido e em paz da mulher.
  Não que fizesse mais alguma diferença, mas semanas se passavam e ele desistia. E via o quão bobo ele parecia lá. Rezando por uma morta. Como se ela pudesse o ouvir, ou até mesmo voltar por ele.
  "Se minhas orações não foram suficientes para lhe trazer do mundo dos mortos..." Ele começou e logo parou. "Seja forte... Seja forte..." Ele sussurrou mais uma vez, não sabia o que realmente sentia. Frustração, raiva, desespero, tristeza, saudade, dor, culpa, arrependimento. "Eu comeria seu câncer se pudesse..." As lágrimas brotaram novamente em seu rosto... "Resista, por favor... Poderemos dançar novamente quando a primavera vier. Poderemos cantar nossas canções de ninar toda a noite... Dessa vez vai ser diferente. Eu prometo. Eu estarei lá por você... Eu estarei" Sua voz perdia a força, e as imagens daquela noite invadiram sua mente.
  Era uma quinta-feria de verão e Cassandra não deveria voltar antes das dez. Jonathan tinha dito ao seu chefe que não passava muito bem e voltou para casa mais cedo.
  Não sabia o quão errado estava naquela época. Ele estava cansado da doença de Cassandra, ele já tinha pagado todos os tratamentos possíveis para ela, e ela insistia em não ficar boa. Ele achou por um tempo que ela mentia, que não era possível alguém nunca se curar. Achava que era apenas uma forma de Cassandra chamar atenção. 
  Os anos passaram e ela não era mais a mesma, sua cabeça não tinha mais cabelo, seus dentes eram fracos assim como suas unhas. Seus olhos não eram tão vivos e sua pele pálida. Mas Cassandra não ia desistir de tudo, depois de muitas sessões de quimioterapia ela resolvera que era hora de voltar a trabalhar, ajudar nas despesas de casa. Afinal, não era justo o marido pagar tudo sozinho, inclusive os tratamentos caros. Mas nessa tarde, justo nessa tarde, Cassandra desmaiara no serviço e fora mandada direto para o hospital. Lá descobriram que seu estado tinha piorado. Ela tentou chorar, mas as lágrimas pareciam ter secado agora. Lágrimas não limpariam sua dor, ao contrário do que sua mãe dizia quando era menor. Cassandra ainda sentia dor e apesar de tudo ela insistiu... Queria voltar para casa, queria terminar seus dias lá... Com seu marido que estivera todas as horas com ela e por ela durantes esses anos no inferno.
  Seus olhos, agora sem vida, caíram e ela não teve força de ao menos soltar qualquer barulho de decepção quando encontrou seu marido na cama com sua prima.
  Sem saber a onde ir, ela saiu de casa na chuva sem saber ao certo para onde ir. Quando tudo escureceu. E  nunca mais acordara.
  As memórias atordoaram-no ainda mais. Era o suficiente.
  Ele se levantou e passou a mão carinhosamente em seu rosto, olhando-a ternamente como, talvez, nunca olhara antes. "Eu estou indo para cama, dormir... Acorde-me quando for também, eu quero ouvir sua voz pela última vez... Se tiver fome, tem lanches prontos na geladeira e maças... Comprei maças essa manhã, ela estão tão vermelhas e doces, assim como você gosta!" Ele sorriu e a beijou na testa antes de sair do quarto. Prometendo a si mesmo que aquela seria a última vez que a via.
  Na mesma noite Cassandra morreu.


segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A Cigana



Acabara de chegar.
Seu vestido vermelho cor-de-sangue era arrastado imperdoavelmente pelo chão enquanto rodopiava e rodopiava.
                A noite era infinita, assim.  Suas mãos brincavam com o ar, fazendo os penduricalhos em seus braços fazerem tal barulho que se ritmava com os instrumentos todos daquela roda musical.
                Seus pés tão sujos quanto doloridos continuavam na brincadeira, rodopiava e rodopiava.
                Seus cabelos escuros eram jogados para o vento, e não parava para nem se quer respirar.
                Sua pele morena sob a luz da lua deixava claro o tipo de mulher que era.
                Mas não ligava, rodopiava e rodopiava em volta do fogo enquanto batiam palmas.
                Valsando inconsequentemente, não se importava com o que diziam ou pensavam.
                Apenas rodopiava e rodopiava.
                A madrugada caia e a manhã clamava pelo seu espaço, mas persistia. Não queria parar de dançar nem por um segundo, não queria voltar à realidade.
                Em seus sonhos estava livre.
                Mal ela sabia que liberdade maior de uma cigana não existia.
                Não estava presa a nada nem a ninguém, apenas rodopiando e rodopiando.
                A manhã logo chegou e as lágrimas teimosas seguiram.
                O sol trouxe consigo a imunda realidade.
                Segurou a barra do vestido cor-de-sangue, e com o rosto escondido pelos cabelos retirou-se.
                Já era hora de partir novamente.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O Farol.


    
     A água batia forte nas pedras.
                O casco do barco não foi perdoado aquela noite pela forte tempestade de verão.
                A tripulação de um homem só tremia.
                Suas botas de chuva não adiantaram. Suas meias já estavam todas molhadas.
                A noite passava e o mar não dava descanso.
                Mas foi o silencio que o fez parar.
                Suas pernas que tremiam desmoronaram, e aquele doce som vindo do mar o chamou.             
                O som o invadira por completo e seus olhos fecharam, os lábios se curvaram e o pobre homem já implorava pela morte.
                Seu corpo era jogado de um lado para o outro de acordo com o balanço do barco.
                Seus olhos se abriram quando a água gelada tomou seu corpo.
                Estava sendo puxado para as terríveis águas tempestuosas.
                Já não tão furioso, o mar. Agora esquecera que não lhe era permitido respirar em baixo d’água.
                Seu corpo ficou leve então.
                E voltando a superfície uma risada maléfica se misturou com outras vozes não tão altas, e puxado novamente foi para dentro.
                Mas dessa vez eram várias mãos puxando e puxando-o para dentro da terrível escuridão.
                Arranhavam suas costas e sua barriga. Debatia-se desesperadamente para ser solto. Não queria acabar em mãos terríveis como aquelas.
                Seu ar foi indo assim como sua força.
                Forçou-se a abrir os olhos.
E a água já não parecia líquida.
O rosto sorria e arrumava os cabelos enfumaçados, tinha olhos negros como os daquela água. E seu sorriso ingênuo o envolvia.
Levantou o braço e foi tocar a bela criatura que logo que viu sua intenção gritou.
Gritou tão forte que o homem sentiu sua alma vazando. Seu grito puxava toda e qualquer vida que lhe sobrara.

                O sol forçou-o a abrir os olhos e lá estava.
                A água estava clara, como se a tempestade nunca tivesse acontecido.
                O farol era seu único companheiro agora.
                O marinheiro não sentiu mais saudades de casa, nem de sua esposa.
                Não sentiu nem ao menos a consciência gritando-lhe que estava preso  ali, sem seu barco.
                Seu rosto já não tinha expressão.
                E tudo que lhe sobrara fora seu corpo vazio, o qual permaneceu parado esperando dias e noites para que as sereias voltassem com seu coração.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Lágrimas e Bombas



                Era uma fria noite de inverno, e os flocos de neve estavam depositados todos no chão, em galhos de árvores, e nos destroços...
                O céu estava cinza, e não se via estrelas. Mas não que alguém fosse se importar com as estrelas em todo aquele caos de guerra.
                Calina seguiu seu caminho tremendo, com um capuz escuro escondendo-a. Não podia estar na rua uma hora dessas, na verdade, hora alguma lhe era permitida.
                Mas ouvira seu destino. Não só o dela. A Inglaterra não suportaria tanto tempo os ataques da Alemanha. E sabia que não haveria outro destino se não a morte para Dror.
                Ela fechou os olhos deixando uma lágrima escapar por entre eles, a qual ao cair gelou seu rosto e a fez perceber que estava pensando nisso novamente.
                Seguiu seu caminho até que chegou ao seu destino.
                Era uma bela visão, branca... A neve cobria tudo. Se não por uma mancha preta. Ela parou e ficou encarando esta por alguns instantes até que se mexeu e um rosto pode ser visto à pálida luz de um dos poucos postes que ainda se encontrava por ali.
                Estavam no meio do nada. Os dois.
                - Callie?
                Ela puxou o capuz para trás e ele pode ver seu rosto.
                - Calina... Vem, eu te levo pra casa, foi idiotice minha falar para você vir me encontrar...
                - Você vai abandonar a Inglaterra, não vai? – Seus olhos estavam cheios d’água quando se percebeu falando.
                - Cal...
                - Você está partindo... E... Você quer dizer adeus, por isso me disse para vir aqui, não foi?
                - Você não entende...
                - EU NÃO ENTENDO? Diga-me, Dror? Meu sotaque... O que te parece? Meu país está nas mãos de nazistas agora... E eu na...
                Antes que ela pudesse continuar a falar o garoto já a tinha calado.
                As lágrimas escorriam de ambos os lados.
                Era um adeus.
                Ele envolveu-a com os braços e levou-a ao lugar onde se conheceram, quando a Inglaterra era considerada segura.
                No verão... Era verde a grama do chão e o céu limpo, as estrelas faziam a festa a noite.
                Entraram em seu abrigo. O único ainda milagrosamente inteiro.
                Sentaram então no chão sujo. O vento não perdoava, os capuzes cobrindo as cabeças. Um olhava o outro pela última vez.
                - Os Estados Unidos entraram na guerra agora... Dizem que eles têm uma carta na manga... Logo a guerra estará acabada e Hittler morto. – Ela dizia com voz fraca tentando convencê-lo, mas nem ela mesma acreditava. Era impossível derrotá-los.
                Ele sorriu e passou a mão nos cabelos molhados de neve que caíra. Então a beijou novamente.
                Quisera assim que fosse verdade.
                Mas...
                A sirene despertou e aquele som terrível encheu o lugar. Os holofotes gritaram nos céus e os aviões entravam na festa. E os dois continuavam de lábios colados. Os soldados saíram nas ruas e as pessoas se abrigavam em seus porões antibombas. Suas famílias agora já tinham percebido a ausência dos dois.
                O lugar vazio e silencioso foi, em instantes, trocado por um caos silenciador. E os dois continuavam escondidos com os rostos molhados e de mãos dadas.
                As bombas logo começaram com seus estragos.
                Gritos atordoados enchiam o lugar de dor e sofrimento, enquanto muitas mulheres agora perdiam seus maridos e crianças seus pais.
                O que uma guerra não pode causar as pessoas?
                Uni-las, ou separá-las.
                Mais dois segundos se passaram e os barulhos ficaram cada vez mais próximos.
                Seus olhos fechados, permaneceram.
                E o mundo estava acabando. E o mundo acabou.

domingo, 23 de setembro de 2012

Saída.





Passaram dois segundos desde a ultima vez que abrira seus olhos pela última vez.  Pelo menos era o que parecia.
Mas não, não foram dois segundos e muito menos a última vez. A íris escura, facilmente confundida com a pupila que logo se dilatava com a falta de luz do lugar, apareceu instantaneamente.
Mas não era ali, não podia ser ali. Como viera parar num lugar escuro como esse? Sua cabeça entrava numa fusão de pensamentos aleatórios e uma leve dor do lado esquerdo.
Logo uma forte luz tocou seus olhos o que a fez fechá-los imediatamente. E só agora tinha realmente aberto os olhos.
Sentiu-se leve e por isso levantou-se da cama. Aproximou-se da primeira janela que encontrou e sorriu ao se deparar com a luz do sol.
“Verão...” Ela murmurou e tornou a caminhar.
Os passos seguiam para lugar algum, apenas caminhava a procura de alguma porta que a levaria para fora daquele lugar gelado.
... Domingo.
Por favor... Continue respirando... Acordou novamente desesperada com um sussurro que balançou seus cabelos e arrepiou todo seu corpo. Levantou-se novamente e olhou o sol que ardia lá fora e tornou a procurar a saída.
Sonhava aos cantos como se deliciaria com o mundo lá fora. Deixaria-o queimar sua pele, e sua retina. Permitiria aquele ar puro invadir seus pulmões e correr pelas suas veias.
Mas apenas sonhava.
Talvez tivesse medo da saída e o que viria a acontecer depois, ou simplesmente não a encontrava.
Vagando pelos corredores cheios, em um dia qualquer, esbarra em alguém com o mesmo olhar perdido.
“És novo?” – As palavras escorregaram pela língua caindo pela boca.
“Como?”
“Está à procura da saída também?”
“Sabe onde é meu quarto?”
“Já olhou o sol lá fora?”
“Já tentou responder alguma das minhas perguntas?”
“Eu perguntei primeiro!”
“Não, não sou novo. Não acho que tenha alguma saída e sim... Todos os dias.”
“Obrigada. E não sei onde é seu quarto.”
“Ah tudo bem... Boa sorte com a saída.”
“Boa sorte com o quarto!”
Continuaram seus caminhos opostos e se esbarraram no dia seguinte novamente.
“Achou seu quarto?”
Ele balançou a cabeça negativamente e logo tornou com a pergunta óbvia sobre ter achado a saída.
“Ainda estou aqui, não?”
“Sim...” Continuaram em silêncio e com olhos perdidos até que aquele foi quebrado pela voz fraca do menino: “Não encontrarás a saída...”.
“Errado...”
“Estou certo, se você quiser talvez ela possa te encontrar”.
A menina não evitou em passar os próximos dias pensando nas palavras do garoto.
A dor do lado esquerdo ainda a incomodava.
Debruçou-se no parapeito da janela e ficou a ver o dia ensolarado passar.
Não encontrou o garoto pelos corredores cheios mais, e logo entristeceu- se e emburrou-se. Ficava sentada olhando para a janela, criando coragem para sair por ali mesmo. Mas suas pernas tremiam e mal sentia suas mãos. Talvez estivesse presa àquele lugar.
Mais alguns dias passaram e ela já não se movia, e nem procurava pela saída. Apenas esperava como o menino dissera.
Sentia seu corpo petrificar conforme não se movia, mas já não ligava.
A ideia de sair daquele lugar virara utópica demais.
 E quando deixou de acreditar por inteiro, simplesmente levantou-se deixando a poeira acumulada em seu colo ir em direção ao chão, mas antes que pudesse tocá-lo a janela estava aberta e a poeira se espalhou, ela sentiu aquela brisa em seus cabelos, e a luz em sua pele. Um último choque percorreu seu corpo.
E era ali, depois de anos... O fim!
Porque nunca acordara, mas só agora dormia em paz.