quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Saída, parte II

 esse texto é de certa forma continuação do texto Saída, mas não apenas uma continuação, mas sim uma explicação ou até mesmo, um nada. A não leitura do primeiro não interferirá no segundo, mas sim complementará o primeiro novamente.




 "Por favor... Por favor..." Ele sussurrava na esperança de que alguém o ouvisse, sombras vermelhas se misturavam com o roxo costumeiro. Assim já se fazia um mês no inferno.
  Ora seus olhos se perdiam no rosto calmo da mulher deitada a sua frente, ora simplesmente encarava o nada e então voltava a chorar e implorar. Como se aquilo fosse realmente a salvar. Não, não ia. Mas seu sentimento de culpa talvez fosse ainda maior que a dor de agora. Saber que poderia ter feito algo e não fez... Mas como... Se talvez não houvesse nada que ele realmente pudesse fazer.
  Se pudesse pelo menos... Seus olhos se fecharam por alguns segundos e os flashes voltaram a percorrer.
  Sem perceber estava de volta ao seu lugar favorito.

  O lugar deveria ter cheiro de rosas, doce e chamativo. Mas poderia fingir que o cheiro de material de limpeza não existisse. Assim passou a respirar pela boca.
  Ele sorriu ao ver aqueles escuros olhos, abertos e saudáveis, o encarando, ele não pode evitar encarar de volta, e sorrir ainda mais quando desistia de tentar entende-lo.
  Então ela sorriu, e aquilo fora o suficiente, o lugar encheu de luz e ele caiu ao chão chorando e praguejando a si mesmo. Não facilitava as coisas, de certo modo, talvez não queria facilitar. Ele teria de sofrer com ela. Esse era o preço a pagar.
  "EU COMETI O ERRO, POR QUE ELA? POR QUE?" Ele esbravejava e gritava aos céus. Só então abriu seus olhos e notou o chão branco e o cheiro de desinfetante enchendo seus sentidos. Continuava no hospital.
  Estava caído de joelhos e suas lágrimas cansadas insistiam. 
  Ele se deixou jogado no chão e seus olhos tornaram a fechar.

  Estavam dessa vez na praia. As ondas batiam nas pedras e ela vestia uma túnica branca, seu sorriso assustadoramente vivo. Sua pele não era aquele pálido doentio e seus cabelos negros viajam com o vento. Ela não parecia estar com frio, apesar dos respingos d'água e o vento forte. Mas isso não o impediu de aproximar e abraçá-la. Mas assim que o fez, seu corpo se dissolveu em poeira e ela estava agora lá embaixo, nas pedras brincando com a água que batia em seus pés, mas ela continuava firme. Ele fez intenção de se aproximar mas isso apenas a fez sorrir e virar as costas. Ela pulou dentro da água deixando as ondas levarem contra as pedras. O sangue se misturou com o extenso verde-azul do mar, mas seu sorriso continuava lá, lhe chamando. O rosto do homem perdeu a cor e ele recobrou a consciência.
  Em dois movimentos, de deitado no chão do quarto a cama dela, ele a abraçou, ignorando todos os tubos e maquinas em volta. Ele encostou o ouvido em seu coração e lá estava ele, batendo calmamente. Ele podia sentir as veias em todo seu corpo sendo alimentadas de sangue, mas ela ainda estava imóvel. Ele subiu o rosto e sua respiração lenta e calma bateu  na sua bochecha fazendo todos os pelos de seu corpo arrepiarem. Uma lágrima caiu no rosto da menina e ele logo a enxugou, não queria ter essa visão dela. Não agora. 
  Entre um desvaneio e outro, daquela mesma noite, ele sussurrou em seu ouvido "Por favor... Continue respirando...". Talvez ela o ouvisse e acordasse sentindo o desespero em sua voz. Mas ela nem ao menos se mexeu.

  Os dias se passavam e o homem morria um pouco a cada dia no leito de morte de sua mulher. Notícias boas surgiram no quarto ao lado... Um menino de onze anos que sofrera um acidente de carro acordou de seu coma. Em desespero, ele pensou até em perguntar ao menino se havia algo enquanto dormiam. Mas logo percebeu a loucura lhe atingindo e ele tornou a se sentar em sua poltrona olhando para o rosto pálido e em paz da mulher.
  Não que fizesse mais alguma diferença, mas semanas se passavam e ele desistia. E via o quão bobo ele parecia lá. Rezando por uma morta. Como se ela pudesse o ouvir, ou até mesmo voltar por ele.
  "Se minhas orações não foram suficientes para lhe trazer do mundo dos mortos..." Ele começou e logo parou. "Seja forte... Seja forte..." Ele sussurrou mais uma vez, não sabia o que realmente sentia. Frustração, raiva, desespero, tristeza, saudade, dor, culpa, arrependimento. "Eu comeria seu câncer se pudesse..." As lágrimas brotaram novamente em seu rosto... "Resista, por favor... Poderemos dançar novamente quando a primavera vier. Poderemos cantar nossas canções de ninar toda a noite... Dessa vez vai ser diferente. Eu prometo. Eu estarei lá por você... Eu estarei" Sua voz perdia a força, e as imagens daquela noite invadiram sua mente.
  Era uma quinta-feria de verão e Cassandra não deveria voltar antes das dez. Jonathan tinha dito ao seu chefe que não passava muito bem e voltou para casa mais cedo.
  Não sabia o quão errado estava naquela época. Ele estava cansado da doença de Cassandra, ele já tinha pagado todos os tratamentos possíveis para ela, e ela insistia em não ficar boa. Ele achou por um tempo que ela mentia, que não era possível alguém nunca se curar. Achava que era apenas uma forma de Cassandra chamar atenção. 
  Os anos passaram e ela não era mais a mesma, sua cabeça não tinha mais cabelo, seus dentes eram fracos assim como suas unhas. Seus olhos não eram tão vivos e sua pele pálida. Mas Cassandra não ia desistir de tudo, depois de muitas sessões de quimioterapia ela resolvera que era hora de voltar a trabalhar, ajudar nas despesas de casa. Afinal, não era justo o marido pagar tudo sozinho, inclusive os tratamentos caros. Mas nessa tarde, justo nessa tarde, Cassandra desmaiara no serviço e fora mandada direto para o hospital. Lá descobriram que seu estado tinha piorado. Ela tentou chorar, mas as lágrimas pareciam ter secado agora. Lágrimas não limpariam sua dor, ao contrário do que sua mãe dizia quando era menor. Cassandra ainda sentia dor e apesar de tudo ela insistiu... Queria voltar para casa, queria terminar seus dias lá... Com seu marido que estivera todas as horas com ela e por ela durantes esses anos no inferno.
  Seus olhos, agora sem vida, caíram e ela não teve força de ao menos soltar qualquer barulho de decepção quando encontrou seu marido na cama com sua prima.
  Sem saber a onde ir, ela saiu de casa na chuva sem saber ao certo para onde ir. Quando tudo escureceu. E  nunca mais acordara.
  As memórias atordoaram-no ainda mais. Era o suficiente.
  Ele se levantou e passou a mão carinhosamente em seu rosto, olhando-a ternamente como, talvez, nunca olhara antes. "Eu estou indo para cama, dormir... Acorde-me quando for também, eu quero ouvir sua voz pela última vez... Se tiver fome, tem lanches prontos na geladeira e maças... Comprei maças essa manhã, ela estão tão vermelhas e doces, assim como você gosta!" Ele sorriu e a beijou na testa antes de sair do quarto. Prometendo a si mesmo que aquela seria a última vez que a via.
  Na mesma noite Cassandra morreu.