segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A Cigana



Acabara de chegar.
Seu vestido vermelho cor-de-sangue era arrastado imperdoavelmente pelo chão enquanto rodopiava e rodopiava.
                A noite era infinita, assim.  Suas mãos brincavam com o ar, fazendo os penduricalhos em seus braços fazerem tal barulho que se ritmava com os instrumentos todos daquela roda musical.
                Seus pés tão sujos quanto doloridos continuavam na brincadeira, rodopiava e rodopiava.
                Seus cabelos escuros eram jogados para o vento, e não parava para nem se quer respirar.
                Sua pele morena sob a luz da lua deixava claro o tipo de mulher que era.
                Mas não ligava, rodopiava e rodopiava em volta do fogo enquanto batiam palmas.
                Valsando inconsequentemente, não se importava com o que diziam ou pensavam.
                Apenas rodopiava e rodopiava.
                A madrugada caia e a manhã clamava pelo seu espaço, mas persistia. Não queria parar de dançar nem por um segundo, não queria voltar à realidade.
                Em seus sonhos estava livre.
                Mal ela sabia que liberdade maior de uma cigana não existia.
                Não estava presa a nada nem a ninguém, apenas rodopiando e rodopiando.
                A manhã logo chegou e as lágrimas teimosas seguiram.
                O sol trouxe consigo a imunda realidade.
                Segurou a barra do vestido cor-de-sangue, e com o rosto escondido pelos cabelos retirou-se.
                Já era hora de partir novamente.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O Farol.


    
     A água batia forte nas pedras.
                O casco do barco não foi perdoado aquela noite pela forte tempestade de verão.
                A tripulação de um homem só tremia.
                Suas botas de chuva não adiantaram. Suas meias já estavam todas molhadas.
                A noite passava e o mar não dava descanso.
                Mas foi o silencio que o fez parar.
                Suas pernas que tremiam desmoronaram, e aquele doce som vindo do mar o chamou.             
                O som o invadira por completo e seus olhos fecharam, os lábios se curvaram e o pobre homem já implorava pela morte.
                Seu corpo era jogado de um lado para o outro de acordo com o balanço do barco.
                Seus olhos se abriram quando a água gelada tomou seu corpo.
                Estava sendo puxado para as terríveis águas tempestuosas.
                Já não tão furioso, o mar. Agora esquecera que não lhe era permitido respirar em baixo d’água.
                Seu corpo ficou leve então.
                E voltando a superfície uma risada maléfica se misturou com outras vozes não tão altas, e puxado novamente foi para dentro.
                Mas dessa vez eram várias mãos puxando e puxando-o para dentro da terrível escuridão.
                Arranhavam suas costas e sua barriga. Debatia-se desesperadamente para ser solto. Não queria acabar em mãos terríveis como aquelas.
                Seu ar foi indo assim como sua força.
                Forçou-se a abrir os olhos.
E a água já não parecia líquida.
O rosto sorria e arrumava os cabelos enfumaçados, tinha olhos negros como os daquela água. E seu sorriso ingênuo o envolvia.
Levantou o braço e foi tocar a bela criatura que logo que viu sua intenção gritou.
Gritou tão forte que o homem sentiu sua alma vazando. Seu grito puxava toda e qualquer vida que lhe sobrara.

                O sol forçou-o a abrir os olhos e lá estava.
                A água estava clara, como se a tempestade nunca tivesse acontecido.
                O farol era seu único companheiro agora.
                O marinheiro não sentiu mais saudades de casa, nem de sua esposa.
                Não sentiu nem ao menos a consciência gritando-lhe que estava preso  ali, sem seu barco.
                Seu rosto já não tinha expressão.
                E tudo que lhe sobrara fora seu corpo vazio, o qual permaneceu parado esperando dias e noites para que as sereias voltassem com seu coração.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Lágrimas e Bombas



                Era uma fria noite de inverno, e os flocos de neve estavam depositados todos no chão, em galhos de árvores, e nos destroços...
                O céu estava cinza, e não se via estrelas. Mas não que alguém fosse se importar com as estrelas em todo aquele caos de guerra.
                Calina seguiu seu caminho tremendo, com um capuz escuro escondendo-a. Não podia estar na rua uma hora dessas, na verdade, hora alguma lhe era permitida.
                Mas ouvira seu destino. Não só o dela. A Inglaterra não suportaria tanto tempo os ataques da Alemanha. E sabia que não haveria outro destino se não a morte para Dror.
                Ela fechou os olhos deixando uma lágrima escapar por entre eles, a qual ao cair gelou seu rosto e a fez perceber que estava pensando nisso novamente.
                Seguiu seu caminho até que chegou ao seu destino.
                Era uma bela visão, branca... A neve cobria tudo. Se não por uma mancha preta. Ela parou e ficou encarando esta por alguns instantes até que se mexeu e um rosto pode ser visto à pálida luz de um dos poucos postes que ainda se encontrava por ali.
                Estavam no meio do nada. Os dois.
                - Callie?
                Ela puxou o capuz para trás e ele pode ver seu rosto.
                - Calina... Vem, eu te levo pra casa, foi idiotice minha falar para você vir me encontrar...
                - Você vai abandonar a Inglaterra, não vai? – Seus olhos estavam cheios d’água quando se percebeu falando.
                - Cal...
                - Você está partindo... E... Você quer dizer adeus, por isso me disse para vir aqui, não foi?
                - Você não entende...
                - EU NÃO ENTENDO? Diga-me, Dror? Meu sotaque... O que te parece? Meu país está nas mãos de nazistas agora... E eu na...
                Antes que ela pudesse continuar a falar o garoto já a tinha calado.
                As lágrimas escorriam de ambos os lados.
                Era um adeus.
                Ele envolveu-a com os braços e levou-a ao lugar onde se conheceram, quando a Inglaterra era considerada segura.
                No verão... Era verde a grama do chão e o céu limpo, as estrelas faziam a festa a noite.
                Entraram em seu abrigo. O único ainda milagrosamente inteiro.
                Sentaram então no chão sujo. O vento não perdoava, os capuzes cobrindo as cabeças. Um olhava o outro pela última vez.
                - Os Estados Unidos entraram na guerra agora... Dizem que eles têm uma carta na manga... Logo a guerra estará acabada e Hittler morto. – Ela dizia com voz fraca tentando convencê-lo, mas nem ela mesma acreditava. Era impossível derrotá-los.
                Ele sorriu e passou a mão nos cabelos molhados de neve que caíra. Então a beijou novamente.
                Quisera assim que fosse verdade.
                Mas...
                A sirene despertou e aquele som terrível encheu o lugar. Os holofotes gritaram nos céus e os aviões entravam na festa. E os dois continuavam de lábios colados. Os soldados saíram nas ruas e as pessoas se abrigavam em seus porões antibombas. Suas famílias agora já tinham percebido a ausência dos dois.
                O lugar vazio e silencioso foi, em instantes, trocado por um caos silenciador. E os dois continuavam escondidos com os rostos molhados e de mãos dadas.
                As bombas logo começaram com seus estragos.
                Gritos atordoados enchiam o lugar de dor e sofrimento, enquanto muitas mulheres agora perdiam seus maridos e crianças seus pais.
                O que uma guerra não pode causar as pessoas?
                Uni-las, ou separá-las.
                Mais dois segundos se passaram e os barulhos ficaram cada vez mais próximos.
                Seus olhos fechados, permaneceram.
                E o mundo estava acabando. E o mundo acabou.

domingo, 23 de setembro de 2012

Saída.





Passaram dois segundos desde a ultima vez que abrira seus olhos pela última vez.  Pelo menos era o que parecia.
Mas não, não foram dois segundos e muito menos a última vez. A íris escura, facilmente confundida com a pupila que logo se dilatava com a falta de luz do lugar, apareceu instantaneamente.
Mas não era ali, não podia ser ali. Como viera parar num lugar escuro como esse? Sua cabeça entrava numa fusão de pensamentos aleatórios e uma leve dor do lado esquerdo.
Logo uma forte luz tocou seus olhos o que a fez fechá-los imediatamente. E só agora tinha realmente aberto os olhos.
Sentiu-se leve e por isso levantou-se da cama. Aproximou-se da primeira janela que encontrou e sorriu ao se deparar com a luz do sol.
“Verão...” Ela murmurou e tornou a caminhar.
Os passos seguiam para lugar algum, apenas caminhava a procura de alguma porta que a levaria para fora daquele lugar gelado.
... Domingo.
Por favor... Continue respirando... Acordou novamente desesperada com um sussurro que balançou seus cabelos e arrepiou todo seu corpo. Levantou-se novamente e olhou o sol que ardia lá fora e tornou a procurar a saída.
Sonhava aos cantos como se deliciaria com o mundo lá fora. Deixaria-o queimar sua pele, e sua retina. Permitiria aquele ar puro invadir seus pulmões e correr pelas suas veias.
Mas apenas sonhava.
Talvez tivesse medo da saída e o que viria a acontecer depois, ou simplesmente não a encontrava.
Vagando pelos corredores cheios, em um dia qualquer, esbarra em alguém com o mesmo olhar perdido.
“És novo?” – As palavras escorregaram pela língua caindo pela boca.
“Como?”
“Está à procura da saída também?”
“Sabe onde é meu quarto?”
“Já olhou o sol lá fora?”
“Já tentou responder alguma das minhas perguntas?”
“Eu perguntei primeiro!”
“Não, não sou novo. Não acho que tenha alguma saída e sim... Todos os dias.”
“Obrigada. E não sei onde é seu quarto.”
“Ah tudo bem... Boa sorte com a saída.”
“Boa sorte com o quarto!”
Continuaram seus caminhos opostos e se esbarraram no dia seguinte novamente.
“Achou seu quarto?”
Ele balançou a cabeça negativamente e logo tornou com a pergunta óbvia sobre ter achado a saída.
“Ainda estou aqui, não?”
“Sim...” Continuaram em silêncio e com olhos perdidos até que aquele foi quebrado pela voz fraca do menino: “Não encontrarás a saída...”.
“Errado...”
“Estou certo, se você quiser talvez ela possa te encontrar”.
A menina não evitou em passar os próximos dias pensando nas palavras do garoto.
A dor do lado esquerdo ainda a incomodava.
Debruçou-se no parapeito da janela e ficou a ver o dia ensolarado passar.
Não encontrou o garoto pelos corredores cheios mais, e logo entristeceu- se e emburrou-se. Ficava sentada olhando para a janela, criando coragem para sair por ali mesmo. Mas suas pernas tremiam e mal sentia suas mãos. Talvez estivesse presa àquele lugar.
Mais alguns dias passaram e ela já não se movia, e nem procurava pela saída. Apenas esperava como o menino dissera.
Sentia seu corpo petrificar conforme não se movia, mas já não ligava.
A ideia de sair daquele lugar virara utópica demais.
 E quando deixou de acreditar por inteiro, simplesmente levantou-se deixando a poeira acumulada em seu colo ir em direção ao chão, mas antes que pudesse tocá-lo a janela estava aberta e a poeira se espalhou, ela sentiu aquela brisa em seus cabelos, e a luz em sua pele. Um último choque percorreu seu corpo.
E era ali, depois de anos... O fim!
Porque nunca acordara, mas só agora dormia em paz.